sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

Número único de Registro de Identidade Civil: um exemplo de como funciona o processo legislativo no Brasil

Expressões realçadas (menos essa) são links que remetem a informações na Internet.

O processo legislativo em vigor encontra-se definido na Seção VIII da Constituição, em dez artigos, a partir do 59º.

Observação: esse primeiro link remete a uma página que este blog considera muito bem organizada, tanto que se encontra listada na seção Links Competentes como Legislação federal brasileira. Trata-se de “herança bendita” recebida de governos anteriores que o atual mantém adequadamente.

Primeira parte: de 1997 a 2009

Nossos legisladores gostam de inventar novidades, nem sempre bem avaliadas e formuladas, que se acumulam sobre os ombros e esgotam os bolsos dos cidadãos. De vez em quando tentam consertar alguma coisa aqui outra ali. Nem sempre dá certo, como no caso da Lei nº 9.454, de 7 de abril de 1997, que instituiu o número único de Registro de Identidade Civil. No site indicado vê-se o texto em vigor, com os vetos aplicados e as modificações introduzidas por lei posterior.

O texto original estabelecia, nos artigos 5º e 6º respectivamente: “O Poder Executivo providenciará, no prazo de cento e oitenta dias, a regulamentação desta Lei e, no prazo de trezentos e sessenta dias, o início de sua implementação”; “No prazo máximo de cinco anos da promulgação desta Lei, perderão a validade os documentos de identificação que estiverem em desacordo com ela.”

As previsões não funcionaram, exceto a tal de cinco anos, cujo prazo não dependia de ninguém, a não ser do fluir inexorável do tempo. De modo que, comicamente, a partir de 8 de abril de 2002, perderam a validade todos os números de registro vigentes, tais como RG, PIS/PASEP/FGTS, título eleitoral, carteira de habilitação e o escambau, inclusive, e principalmente, o ubíquo CPF. O Brasil não parou por isso, o “leão” não se intimidou e ninguém se importou, a tempo, com o incrível fiasco.

Certamente uma enorme “herança maldita” para um governo recém iniciado, mas nesse novo governo também ninguém se preocupou com o fato, se é que foi percebido.

O competente Google registrava, até há pouco tempo, quase 600 ocorrências encontradas com o argumento ["numero unico" identidade].

Supostamente por gozação de alguém na “sala do cafezinho”, no dia 9 de abril de 2002, no dia seguinte à “perda de validade de todos os documentos de identificação que estiverem em desacordo” com o citado diploma legal, foi dada entrada, no protocolo do Senado Federal, do projeto de lei PLS 76/2002 que estabelecia em seu artigo 1º: “É prorrogado, a partir de 8 de abril de 2002, por mais 5 (cinco) anos, o prazo previsto no art. 6º da Lei nº 9.454, de 7 de abril de 1997”. Na Câmara dos Deputados o projeto de lei do Senado, então com número PL-5297/2005, foi apensado a três outros em tramitação na Casa; as quatro proposições foram consolidadas e aprovadas como consta do Diário da Câmara dos Deputados de 3/6/2005, página 23107, no final da coluna 2; isso, mais de três anos depois do desastre devidamente constatado.

Apesar de debatida em ambas as casas do Congresso, a coisa não se transformou em lei e, portanto, não gerou consequências.

Segunda parte: de 2009 a 2010

Não foi encontrada informação sobre qualquer nova lei específica sobre o tema. No entanto, ocorreu uma solução tão brasileira quanto a jabuticaba: o presidente da República baixou a Medida Provisória 462, de 13 de outubro de 2009, estabelecendo providências relacionadas com o Fundo de Participação dos Municípios; nada a ver, portanto, com o número único de Registro de Identidade Civil. Nas interações com o Congresso Nacional para a elaboração da lei de conversão correspondente, surgiu a Lei nº 12.058, de 13/10/2009, envolvendo não só a MP citada mas também, de cambulhada, diversos temas em tramitação no Congresso, inclusive a questão relacionada com o Registro de Identidade Civil, que ficou assim resolvida nos termos do artigo 16, sem qualquer prazo ou providência específica.

Resolvida porque eliminou todos os prazos, mas não quanto aos objetivos que agora tanto faz serem daqui a pouco ou nunca. Parece molecagem. Ponto significativo da Lei 12.058/2009 é sua ementa, que dispensa qualquer comentário:

“Dispõe sobre a prestação de apoio financeiro pela União aos entes federados que recebem recursos do Fundo de Participação dos Municípios - FPM, no exercício de 2009, com o objetivo de superar dificuldades financeiras emergenciais; altera as Leis nos 11.786, de 25 de setembro de 2008, 9.503, de 23 de setembro de 1997, 11.882, de 23 de dezembro de 2008, 10.836, de 9 de janeiro de 2004, 11.314, de 3 de julho de 2006, 11.941, de 27 de maio de 2009, 10.925, de 23 de julho de 2004, 9.636, de 15 de maio de 1998, 8.036, de 11 de maio de 1990, 8.212, de 24 de julho de 1991, 10.893, de 13 de julho de 2004, 9.454, de 7 de abril de 1997, 11.945, de 4 de junho de 2009, 11.775, de 17 de setembro de 2008, 11.326, de 24 de julho de 2006, 8.427, de 27 de maio de 1992, 8.171, de 17 de janeiro de 1991, 5.917, de 10 de setembro de 1973, 11.977, de 7 de julho de 2009, 11.196, de 21 de novembro de 2005, 9.703, de 17 de novembro de 1998, 10.865, de 30 de abril de 2004, 9.984, de 17 de julho de 2000, e 11.772, de 17 de setembro de 2008, a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001, e o Decreto-Lei no 1.455, de 7 de abril de 1976; revoga a Lei no 5.969, de 11 de dezembro de 1973, e o art. 13 da Lei no 11.322, de 13 de julho de 2006; e dá outras providências.”

Obs: em vermelho, a referência à primeira lei que tratou do Registro de Identidade Civil. O leitor poderá verificar do que tratam as demais leis modificadas na listagem da legislação federal.

Teria sido tão fácil...

A solução parece óbvia: adotar, imediatamente e sem qualquer protelações, o CPF, que já é usado por grande parcela da população, como o tal “número único”, com algumas adaptações e providências complementares:

a) no início de novas cidadanias: os cartórios de registro civil, em convênio operacional com a Receita Federal, atribuir um número de CPF para cada nova certidão de nascimento; idem com relação aos atos de naturalização de estrangeiros;

b) a Receita Federal preparar-se para a antecipação do fim da capacidade numérica do atual sistema de CPF (um bilhão, mais de cinco vezes maior do que a atual população brasileira).

c) adaptação do novo sistema ao caso de cidadãos que além do nome de batismo vierem a adotar o “nome social”, já existente em alguns estados e, nacionalmente, dependendo de aprovação de matéria em tramitação no Congresso Nacional, que “acrescenta o art. 58-A ao texto da Lei nº 6.015, de 31 de dezembro de 1973, que dispõe sobre os registros públicos e dá outras providências, criando a possibilidade das pessoas que possuem orientação de gênero travesti, masculino ou feminino, utilizarem ao lado do nome e prenome oficial, um nome social”.

Era isso. Desculpem-me, mas não tive competência para ser breve (homenagem ao Padre Antônio Vieira, competente escritor português, autor da magistral frase “Peço desculpar-me de ter sido longo, por não ter tempo de ser breve!”).

Nenhum comentário: